quinta-feira, 1 de julho de 2010

BUCHADA NORDESTINA

Aconteceu numa cidade do nordeste. Não revelo nomes para não delatar a família nem dilatar a vergonha

Fomos convidados para almoçar na fazenda de um parente de parente. Sabe aquele amigo da tia, do irmão do cunhado da sogra... é por aí. Fomos. Eu, minha mulher e a prole, num domingo de sol brilhante, com um maravilhoso mar de azul marinho, cheio de ondas e esperanças para os banhistas.

Não era longe, Apenas umas duas horas de estrada de chão batido. Alguns buracos vieram a calhar para sacolejar a carcaça e trazer mais fome do que a que já tínhamos. De fato, chegamos famintos. Alguns goles de cana, um pedacinho de queijo e o apetite vaporizando o ambiente. A sala cheia de gente, parentes de parentes, que nós não conhecíamos. Um brinde ao cavalheirismo durante as apresentações. Fomos todos introduzidos no seio daquela família alegre e feliz.

A convite da anfitrioa para conhecer a cozinha, entramos numa sala imensa, onde um caldeirão diabólico, com labaredas enormes e demoníacas, esquentava seu fundo que não parava de chiar. Boiando na água que borbulhava vimos umas bolas imensas, que mais pareciam cérebros de macaco prego ou os ovos de touro.

Diante daquela visão dantesca, de uma comida que não tardaria a nos ser servida, vislumbrei uma cena que assola o imaginário do desconhecido: no agreste nordestino, quase perto de um pedacinho de mata atlântica,que conseguiu se esconder da cobiça dos latifundiários, uma choupana coberta de palhas de coqueiros, com um só cômodo, uma figura anoréxica, bailando no ar, em sua vassoura deambulante, naquele exíguo espaço, com um nasal proeminente, avançando adiante do corpo fraco e rígido, como se o nariz fosse um cavalheiro nórdico, pronto para defender seu feudo, da invasão da maldade dos humanos, não bruxos.

Num imenso caldeirão, fervendo ervas medicinais como também as que enfeitiçam os corações desprevenidos, ou as mentes perversas laborando vinganças atrozes ou ainda a decapitação dos que causaram prejuízos aos inquilinos do planeta terra.

É que a “chef”, Dona Zefinha, era uma figura magra e velhinha, com um imenso nariz, frente àquele continente que não parava de borbotar.

Aquela mistura verde e viscosa borbulhava como lava incandescente de um vulcão em atividade, derramando pelas bordas da panela de alumínio, provocando mal estar a quem olhasse para aquele almoço prestes a ser degustado. Tudo regado com um bom molho de pimenta.

Assim minha mulher teve a audácia de perguntar à bendita cozinheira, de que era feita aquela iguaria!

_ôxente! Sabe não, minha fia? Isso é bucho de bode, a coisa mais maravilhosa que existe por estas bandas...

Sim! Mas o que tem dentro do bucho?

_Esse povo das estranja (tinha percebido o sotaque) num sabe nada de nada! Prestenção que agora vou desminhunçá a comida pra você entender. Primeiro: tripa de bode virada , figo (fígado), passarinha (pâncreas ) bofe ( pulmão), riinn e tem quem bote também um pedacim de coração. Tudo muito bem lavado senão fica um cheiro de merda que não tem quem aguente. Quando isto acontece e o freguês corta o bucho(estomago), o fato explode pra tudo quanto é lado, como um traque, e a catinga no meio do terreiro, bota todo mundo pra correr, feito um bando de doido. Mai num é o caso deste, viu, minha bichinha!E agora, mulezinha de Deus, tem que temperar, né?

_O que a senhora usa como tempero?

_É meu segredo, mas vou lhe dizer: refogo sal, alho, cebola, pimentão, cominho, coentro, e uma pitada de pimenta do reino.. Tudo cortado bem miudinho que é pro povo sentir o gosto sem saber o que é! Adispoi custuro o bucho com linha branca, com tudinho lá dentro, Agora vai a resenha toda pra panela com bastante água muito bem temperada. Baita trabalho...

Logo depois foi anunciado que o almoço seria servido naquele momento angustiante para nós. .Aquela comida que minha gente do Uruguay não conhecia, deixou a todos aflitos com o próximo ato. Dava para perceber nos olhos e expressões faciais, que meus imberbes filhos estavam ansiosos e assustados com o que poderia ser buchada. Seria uma surpresa agradável??? Do meu grupo de incautos, só eu sabia e gostava.

Desastre total. Um dos filhos disse:

_Mama, esto parece um bolso de mierda. No ló voy a comer. Tiene olor feo...

Os outros repetiam o refrão.

_E agora, meus filhos vão ficar sem almoço? perguntou minha mulher. Ela, esperta que é, já havia visto na cozinha, que Dona Zefinha, dispunha de outras panelas repletas de comidas variadas. Tratava-se de “galinha”, que é comida de pobre, pois que era para o elenco de empregados e empregadas. Os patrões iam comer “buchada”, comida de rico.

Mãe estremada que é, mais que ligeira sob o suborno de uma boa conversa, convenceu Dona Zefinha a fazer quatro pratos com comida de pobre: galinha. Um pouco de arroz e farofa de “bolão”. Estavam prontas as 4 refeições.

Um almoço injurioso se transformou em verdadeiro festin, mesmo com a estranheza dos anfitriões, que não entendiam porque os habitantes de outro burgo não comiam buchada, iguaria tão diferenciada e de sabor e cheiro únicos.

Voltamos para casa, satisfeitos e com a promessa de voltarmos àquela fazenda ainda que não participássemos do prato corriqueiro daquele grupo familiar.

A volta foi um pouco, para não dizer, muito conturbada, pois que eu havia exagerado nos meus goles de cachaça, bebida a que não estava afeito. A família uruguaya durante o retono, rezou dez rosários e mais algumas orações, pedindo a Deus pra chegar em casa sãos e salvos.

Chegou...

Naquela cidade vivemos muitos natais, felizes sem ter que ingerir a apetitosa buchada.

Anchieta

PS. Receita de molho de pimenta do “chef” Anchieta:

1º - 100 gr. de pimenta malageta;

2º - 50 gr. de pimenta da índia (amarela e redondinha)

3º -duas colheres de chá de orégano;

4º - três dentes de alho amassado;

5º - uma cebola pequena bem picada;

6º - uma boa pitada de colorau;

7º - duas colheres de sopa de extrato de tomate (para emprestar cor)

8º - “ATENÇÃO” meio copo americano de MEL DE ABELHA”

9º - um copo americano de vinagre; e

10º - cinco colheres de sopa de azeite “extra virgem”.

Deixar descansar por dois dias.

OBS: Só Yves conseguiu colocar mais de cinco gotas num prato bem cheio e bem molhado com feijão. Dea, apenas provou, logo ela que adora molho de pimenta.

D E S F R U T E M ! ! ! ...

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